18/01/2017

Branquitude e passividade

Leôncio (Leopoldo Pacheco) e Isaura (Bianca Rinaldi) em cena da novela A Escrava Isaura. Imagem: Record/Divulgação.

     Desde o dia 09 de janeiro de 2017 que a Rede Record está reprisando a novela A Escrava Isaura. A mesma foi exibida pela primeira vez entre os anos de 2004 e 2005. É importante lembrar que entre os anos de 1976 e 1977 a Rede Globo de Televisão exibiu a novela A Escrava Isaura, tendo Lucélia Santos como protagonista. Ambas as produções foram um verdadeiro sucesso (principalmente a primeira) e já foram exibidas em dezenas de países. 

Lucélia Santos na pele de Isaura, ao lado de Leôncio (Rubens de Falco) em cena da primeira versão de A Escrava Isaura (1976-1977). Um dado curioso: o ator Rubens de Falco atuou em A Escrava Isaura (2004 - 2005), mas desta vez interpretando o Comendador Almeida, pai de Leôncio (Leopoldo Pacheco). Imagem: Reprodução. 

     Minha monografia está praticamente concluída e na mesma eu faço uma análise do discurso do romance A Escrava Isaura. O objetivo de meu trabalho é analisar o modo como os conceitos de Bernardo Guimarães (autor do livro) e da sociedade em que viveu (o Brasil do século XIX) influenciaram na hora de escrever o romance em questão. Para isso, eu faço uma análise das instituições de ensino por onde Bernardo passou, bem como das transformações que ocorreram no país ao longo do século XIX.
      Ambientada em Campos dos Goytacazes (RJ), A Escrava Isaura conta a história de Isaura, uma moça nascida escrava e que fora criada pela mãe de Leôncio como a filha mulher que nunca tivera. A mulher agiu dessa forma porque o esposo, o Comendador Almeida, mandou Juliana (mãe de Isaura) trabalhar exaustivamente na lavoura, causando a morte da mesma. Ele fez isso depois que Juliana recusou se deitar com ele mais uma vez (após muita pressão, ela teve relações com Almeida uma vez, mas criou uma repugnância tão grande pelo mesmo que não quis que o episódio se repetisse). Diante do ato cometido pelo marido, a esposa de Almeida resolve criar Isaura como uma verdadeira fidalga. Desta forma, Isaura teve aulas de música, aprendeu outros idiomas, aprendeu a ler, a escrever e aprendeu também o oficio doméstico. Isaura havia se tornado uma mulher linda e refinada, mas continuava sendo escrava.

Isaura (Bianca Rinaldi) tocando piano em cena da novela A Escrava Isaura. Imagem: Reprodução. 

      Algo que Bernardo Guimarães ressalta a todo instante em A Escrava Isaura é a branquitude de Isaura, que em nada lembra a sua condição de escrava. Segundo o livro, Isaura era branca porque, embora sua mãe fosse negra, seu pai (que se chamava Miguel) era um branco português. Com isso, Isaura era branca por causa da origem do pai. Alguns estudiosos (inclusive o autor deste blog) acreditam que a escolha de Bernardo foi estratégica. A primeira edição do livro foi publicada em 1875, quando o país ainda era escravocrata e racista também. O número de pessoas que sabiam ler e escrever era ínfimo e a sua maioria estava concentrada na alta sociedade. Além disso, o público que lia romances era composto por mulheres brancas, ricas e com relativo grau de instrução. Se Isaura fosse negra, provavelmente o livro não teria feito o sucesso que fez.
      Além de ressaltar constantemente a branquitude de Isaura, Bernardo Guimarães destaca com frequência a feminilidade da mesma. Isaura é descrita como uma moça branca, de cabelos longos, muito bonita, delicada e gentil. Estas eram as características de uma moça abastada do Brasil oitocentista. Os cabelos longos eram (e ainda são) o símbolo máximo do sexo feminino e lutar pela igualdade de sexo significa cortar os  mesmos, como fizeram algumas feministas entre fins do século XIX e começo do século XX. A mulher (principalmente a mulher rica, pois sua função era representar) deveria passar uma imagem de sensibilidade. Devia sempre falar baixo, ser contida e não se impor. Deveria andar na rua devagar e de cabeça baixa a fim de não cruzar o olhar de um homem. As mulheres usavam um vestido com muitos panos a fim de deixar o mesmo mais rodado possível. Toda essa quantidade de panos tornava a vestimenta feminina pesada, deixando as mulheres praticamente imóveis. A invenção da crinolina, uma armação de metal que era colocado por baixo dos vestidos, deixava a perna das mulheres livres e permitia a sua locomoção. Além disso, o apetite excessivo não era considerado um comportamento adequado para uma mulher, que tinha sua dieta baseado em chás de gosto insípido e biscoitos açucarados. Por outro lado, o homem podia beber excessivamente, comer de igual modo e fumar.

Condessa Maria Ivanovna Beck, óleo sobre tela de Franz Xavier Winterhalter (s/d). O volume dos vestidos chegou a provocar a imobilidade das mulheres. Imagem: Museu de Arte Metropolitano de Nova Iorque. 

     Bernardo Guimarães escreveu A Escrava Isaura com a finalidade de criticar o regime escravocrata então vigente no Brasil. Quando o livro foi publicado pela primeira vez, o assunto já era largamento discutido no país. Além deste debate, Bernardo trás para o mesmo romance a questão da república, que já era também discutida no Brasil em 1875, quando o livro foi publicado pela primeira vez. Vale frisar que o século XIX foi um período de grandes transformações no Brasil. O fim do tráfico de escravos, a posterior abolição da escravatura, a invenção do telefone e a implantação da rede de esgoto são apenas alguns exemplos. Com isso, se conclui que o século XIX foi de grandes mudanças. Entretanto, Isaura parecia alheia as mesmas. Ela mantém a mesma atitude do começo ao fim da história: bela, delicada e gentil. Além disso, mesmo sendo a protagonista, Isaura raras vezes toma alguma atitude: é sempre alguém que toma por ela. É o pai que tem a ideia de fugir com a filha para fora do Rio de Janeiro, é o Álvaro quem salva Isaura de um casamento terrível (Leôncio queria que a moça se casasse com Belquior, homem de aparência medonha para só assim dar alforria para Isaura) e é a mãe de Leôncio que pede que Isaura seja alforriada após sua morte, embora seu pedido não tenha sido atendido. Em meio a tudo isso, Isaura permanece resignada e conformada com sua história. Além disso, em nenhum momento do romance Isaura faz um discurso inflamado pedindo a abolição da escravatura: sua repulsa ao regime fica subentendida. Ninguém imagina uma mulher doce e gentil chicoteando um escravo, mesmo que este escravo seja a Rosa, mulher que sentia inveja de Isaura pelo fato de Leôncio tê-la trocado para seduzir a moça. Você pode imaginar o Leôncio ou o Comendador Almeida maltratando um escravo, mas Isaura não. Já o debate em torno da república é trazido para o romance por meio de Álvaro, homem rico que se casa com Isaura no fim da história. Mesmo sendo rico, Álvaro detestava todos os privilégios de classe, era republicano e tinha afinidades com o socialismo.
      É interessante notar que toda a educação que Isaura recebeu foi em casa. Tal ato foi mais uma estratégia de Bernardo Guimarães. Foi no século XIX que surgiram as primeiras instituições de ensino voltadas para o público feminino. É fato que já existiam colégios, mas eles não aceitavam moças. Isso acontecia porque se acreditava que a mulher deveria aprender somente o necessário para cuidar da casa e dos filhos. Logo, era "desnecessário" para uma mulher aperfeiçoar seus estudos. Alguns colégios femininos, mesmo ensinando atividades domésticas para as moças e dizendo que a missão máxima do mesmo era preparar a mulher para cuidar de sua família, não foram bem vistos pela sociedade e alguns até fecharam suas portas por falta de clientela. Mais uma vez Bernardo Guimarães procurou agradar o público leitor de seu romance.

Isaura (Lucélia Santos) e Álvaro (Edwin Luisi): final feliz. Imagem: Cedoc/ TV Globo. 

Conclusão

     Bernardo Guimarães escreveu A Escrava Isaura focando um determinado público. Este público era composto de homens e mulheres abastados, tradicionais, brancos e escravocratas. O livro alcançou seu objetivo: as agruras de Isaura sensibilizaram o público, que passou a discutir ainda mais  a abolição da escravatura. Se Isaura fosse uma mulher negra, voz ativa de sua própria história e que contestasse a ordem vigente, o romance teria feito o mesmo sucesso? 

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