01/08/2017

Lima Barreto e Machado de Assis sob a perspectiva do racismo

Machado de Assis (à esquerda) e Lima Barreto (à direita). Imagem: Reprodução.

     Ambos são os maiores escritores do Brasil e viveram mais ou menos na mesma época. Pelo fato de Lima Barreto e Machado de Assis serem negros, o racismo refletiu na vida dos dois. O racismo tem muitas formas de ação e uma delas é o embranquecimento (na medida do possível) do negro. Quando este embranquecimento não é possível, a estratégia é o esquecimento.
     Vamos começar pelo mais velho. Machado de Assis nasceu no dia 21 de junho de 1839 e morreu no dia 29 de setembro de 1908. Nasceu um ano antes da coroação de D. Pedro II (que foi possível graças a um golpe da maioridade, levando Pedro II ao trono quando este tinha apenas 14 anos de idade). Por conta disso, Machado de Assis cresceu e amadureceu durante o reinado de D. Pedro II (1825-1891), que durou 49 anos. Quando faleceu, em 1908, um golpe militar republicano havia derrubado a monarquia no Brasil nove anos antes e a família imperial brasileira se encontrava em um exílio forçado. Morreu em 1908, quando o Brasil vivia os primeiros anos da experiência republicana. Morreu aos 69 anos de idade. Algumas das obras mais conhecidas de Machado são Helena (1876), Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Dom Casmurro (1899) e Esaú e Jacó (1904). Dom Casmurro, que foi adaptado pela Rede Globo em 2008 com o nome Capitu, em homenagem ao centenário da morte de Machado de Assis, talvez seja o romance mais conhecido de Machado. Nesta obra, o protagonista Bentinho é perseguido do começo ao fim do romance com a dúvida de que sua esposa Capitu o traía com o seu melhor amigo Escobar.

Bentinho (César Cardadeiro) e Capitu (Letícia Persilles) na versão jovens de seus respectivos personagens na minissérie Capitu (2008), uma minissérie produzida pela Rede Globo que foi inspirada no romance Dom Casmurro (1899). Imagem: TV Globo.


     Lima Barreto nasceu no dia 13 de maio de 1881 (a abolição da escravatura ocorreria nesse mesmo dia, em 1888) e morreu no dia 01 de novembro de 1922 (mesmo ano em que ocorreu a Semana de Arte Moderna). Foi um escritor que publicou romances, sátiras, contos, crônicas e uma grande obra em periódicos, em especial revistas populares e periódicos anarquistas do começo do século XX. É importante destacar que Lima Barreto publicou textos em alguns periódicos usando pseudônimos, fato que foi descoberto nos últimos anos. Assim como Machado de Assis, Lima Barreto também nasceu durante o reinado de D. Pedro II. A diferença é que Lima Barreto nasceu na última década desde mesmo reinado, quando o regime dava sinais cada vez mais constantes de seu fim. Lima Barreto também nasceu quando o regime escravista vivia seus últimos anos, findando em 1888. Além disso, o escritor viveu os primeiros anos da república no Brasil. Todo este cenário político-social influenciou as obras de Lima Barreto. A mãe do escritor em questão era professora primária e o pai era ligado ao Visconde de Ouro Preto (1836-1912), que seria padrinho do escritor, permitindo ao mesmo acesso a uma educação de qualidade. Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911) e Clara dos Anjos (1948), que foi publicado postumamente, são os romances mais conhecidos de Lima Barreto e leitura obrigatória em provas de vestibular. 
     Há um detalhe que faz toda a diferença (mas não deveria fazer) e que está presente em Machado de Assis e Lima Barreto: eles eram negros. Sim. Dois dos maiores escritores da literatura brasileira são negros. Por conta disso, o racismo se refletiu na vida de ambos de maneira diferente. Todo negro tem um caso de racismo para contar. Inteligência, fama, dinheiro e prestígio não são fatores que impeçam um negro de sofrer racismo em determinado momento de suas vidas. Alguns jogadores de futebol bastante populares já sofreram racismo, Taís Araújo já sofreu racismo e Cris Vianna, a cantora Ludmilla e Sheron Menezes também. Uma das formas de atuação do racismo é o embranquecimento do negro. Primeiro, o racismo tenta a todo instante invisibilizar o negro, mas ao não conseguir isso, passa a  branquear o mesmo. Foi o que houve com Machado de Assis. Ele era negro, mas em fotos e pinturas ele costumava ter a pele clareada. Não tem como negar a genialidade e o talento de Machado para a escrita. Partindo deste fato, Machado de Assis passou a ser clareado em pinturas e fotografias. Nilo Peçanha (1867-1924), Washington Luís (1869-1957) e Rodrigues Alves (1848-1919), ex-Presidentes da República, também eram negros e tinham suas peles clareadas em fotografias e pinturas. 

                         Elizabeth Taylor (1932-2011) em cena do clássico filme Cleópatra (1963), que quase levou a Fox à falência. Imagem: Reprodução. 


     O embranquecimento do negro é uma estratégia histórica e recorrente do racismo. Cantoras negras mundo afora, em especial as "divas popstar", têm a sua pele clareada e são vistas como morenas. A civilização egípcia é estudada há anos nos ensinos Fundamental e Médio. Entretanto, algo que me chamava a atenção era que em nenhum momento o Egito era associado à África. Era como se o Egito não fosse localizado nesse mesmo continente. Outra coisa que me chamava a atenção era que os egípcios, principalmente os faraós, eram colocados como brancos nos livros didáticos. Acredito que a popularização dessa ideia dos habitantes do Egito serem pessoas brancas se deve ao filme Cleópatra (1963). O filme narra a biografia da emblemática Cleópatra (69 a.C. - 30 a.C.), cujo papel no longa (põe longa nisso! O filme tem duração de 243 minutos, algo em torno de pouco mais de quatro horas) foi interpretado pela atriz branca Elizabeth Taylor (1932-2011). Os custos do filme foram altíssimos e quase levaram a Fox à falência. Mas o alto investimento não foi em vão: o longa teve nove indicações ao Oscar e foi vencedor em cinco categorias. Além disso, Cleópatra foi indicado em cinco categorias do Globo de Ouro e se tornou um clássico do cinema mundial. 
     Ao contrário do que houve com Machado de Assis, Lima Barreto não foi embranquecido: foi esquecido, outro instrumento do racismo. Isso porque, além de ser negro, Lima Barreto foi o crítico mais voraz da Primeira República no Brasil. Seus textos criticavam os privilégios das famílias aristocráticas e militares. Em sua obra, de temática social, Lima Barreto deu o protagonismo aos pobres, boêmios e arruinados. O escritor satirizava com humor e sagacidade os vícios e corrupções da sociedade e da política. Por conta disso, foi duramente criticado pelos escritores de seu tempo. Além disso, os textos de Lima Barreto causavam desconforto na sociedade, em especial na elite que ele criticava. Por isso, ainda em vida, Lima Barreto foi silenciado. Fazer o que ele fez era considerado um crime. As análises de Lima Barreto acerca do sistema republicano brasileiro, bem como da sociedade deste período, são consideradas profundas e atuais. A intenção do escritor era fazer uma "literatura militante". Ele usava a escrita para denunciar privilégios sociais e pensar em uma "sociedade alternativa". 
     Machado de Assis não era um escritor militante e por conta disso teve seu talento reconhecido, ainda que para isso a sua pele tenha sido clareada por muitos anos. Vale destacar esta crônica de Machado sobre a Abolição da Escravatura, onde o autor usa da ironia para criticar o modo como se deu tal processo. Destaque também para Esaú e Jacó (1904), onde os gêmeos Pedro e Paulo são os protagonistas, sendo que um é uma analogia à monarquia e o outro à república. São assuntos abordados neste livro: a abolição da escravatura, o encilhamento, o Estado de Sítio e a Proclamação da República. Mesmo não sendo necessariamente um escritor militante, Machado de Assis falou de política inúmeras vezes em seus textos. 
     Por outro lado, Lima Barreto teve a sua obra silenciada por muitos anos pelo fato de ser um escritor militante. É fato que há algum tempo Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911) e Clara dos Anjos (1948) são leituras obrigatórias em provas de vestibular. Entretanto, isso ainda está longe do reconhecimento que Lima Barreto merece. O escritor teve sua obra silenciada por muitos anos e só agora, com as releituras da história e de sua vida, é que seu talento tem sido devidamente reconhecido. 

Conclusão

     Machado de Assis e Lima Barreto foram vítimas de duas estratégias do racismo: o embranquecimento e o esquecimento. O primeiro é um escritor reconhecido e até mesmo considerado o rei da literatura nacional. E para não terem que admitir que o maior nome da literatura no Brasil era negro, a pele de Machado foi clareada por muitos anos. Nos últimos tempos isso está mudando e Machado de Assis é representado como era: negro. Já Lima Barreto tinha grande talento para a escrita e usava isso para criticar os privilégios e vícios da sociedade de seu tempo. Seus escritos incomodavam a classe abastada e política da época. Por conta disso, Lima Barreto foi silenciado por muito tempo, fato que tem mudado nos últimos tempos.

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